Javert e os presos de joinville

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4 de fevereiro de 2013 por deglutindopensamentos

Pedro Henrique Leal

*convidado 

Imagem dos presos sendo torturados

Imagem dos presos sendo torturados

Ônibus queimados, ataques a delegacias, denúncias de presos torturados e opiniões inflamadas: este último fim de semana escancarou algo de podre na sociedade joinvilense. No mesmo dia em que a mais recente adaptação do clássico de Victor Hugo “Os Miseráveis” entrava em cartaz, as opiniões emitidas online por certos leitores do principal jornal da “cidade dos príncipes” demonstravam a atualidade da crítica mordaz feita na metade do século XIX. 

Clamando por punições mais árduas, – em um país que já conta com um dos mais desumanos sistemas prisionais do globo – pela pena de morte e a punição preemptiva dos “marginais” e “bandidos”, certos setores da população joinvilense demonstram simpatia com a lógica preta-e-branca de Javert. Uma lógica cruel que divide o mundo entre o “bandido” e o “cidadão de bem”, duas categorias rijas e que nunca se misturam. Onde mudança e redenção são impossíveis, e onde a ideia de justiça se resume a mera vingança.

Seria a classe média de Joinville capaz de dar uma segunda chance a alguém como Jean Valjean, ou seria seu status como “criminoso” uma garantia de exclusão? Os gritos de prisão perpétua e ações mais duras, quando a polícia brasileira já é considerada abusiva como está – a ponto do Conselho de Direitos Humanos da ONU ter recomendado a dissolução da Polícia Militar – demonstram que para alguns, a completa degradação humana não é punição o bastante. Chegam ao ponto de chamar prisões superlotadas e imundas de “mordomias”.

Se você acha que eles são gente de bem, porque não dá emprego pra esses vagabundos pra ver o que é bom”, dizem. “Essa gente não tem recuperação”, bradam. “Tem é que apanhar mesmo”, demandam, frente a tortura evidente. No livro de Victor Hugo, Jean Valjean é acossado pela sociedade e condenado a 19 árduos anos de labuta sem fim na prisão pelo roubo de um pão. Entrou lá um homem gentil e assustado, ao sair era um criminoso perigoso. Nossas prisões não são diferentes do ambiente em que a lei “matou” Valjean – homens desesperados, enganados e de fato, as vezes perversos entram lá para saírem monstros forjados nas chamas da tortura e do descaso oficial.

É fácil e confortável pensar que os problemas da criminalidade no Brasil se devem a má indole e a preguiça de “vagabundos”. Afinal, essa mentalidade exime a sociedade e o Estado de qualquer culpa pelos crimes. E sendo as causas da violência “pessoas ruins”, não é lógico que seria melhor “cortar o mal pela raiz” e exterminar a “bandidagem? Tão rigorosa é esta mentalidade de “bandido bom é bandido morto”, que a ideia de ressocialização do preso nem sequer passa pela cabeça de alguns. Não importa se pagaram sua pena, ou sequer se são realmente culpados.  Para Javert, Valjean é perigoso por ser um detento. Para os comentaristas inflamados do AN, os presos torturados assim o merecem, por serem presos, independente do seu crime.

Cada nova reação da população carcerária – ou mesmo da população carente, convenientemente enquadrada pela elite no grupo dos “bandidos” por não serem tão bem sucedidos quanto eles – um grito novo por maior violência por parte da polícia. Um ambiente onde os 16 anos de dedicação de um homem da lei – mas não da justiça – como Javert para prender um ladrão de pão talvez seja visto como “afagar a cabeça de bandido”. Afinal, Valjean é um criminoso perigoso!

Mas é isto justiça? Seria a mentalidade fixa e implacável de Javert a medida correta? Temos a quarta maior população carcerária do mundo, com cerca de meio milhão de detentos em um sistema que suportaria 300 mil. Segundo o Depen (Departamento Penitenciário Nacional),  170 mil não foram condenados ainda – são presos provisórios, marcados eternamente por crimes que podem não ter cometido. Ainda pior, quase 22 mil já deveriam ter sido soltos, e continuam presos após o fim de suas penas.

A maior parte deles, presos por pequenos crimes – não são grandes traficantes, sequestradores e assassinos que lotam nossas prisões, mas ladrõezinhos desesperados, mensageiros do tráfico sem opções e outros excluídos. Dois terços não são violentos, segundo dados do Conselho Nacional de Justiça. São Legitimos Jean Valjeans, empurrados ao crime por falta de opção, mal vistos por serem de comunidades carentes, sem educação após o descaso da sociedade e do estado. Largados a própria sorte, entrando no inferno das prisões brasileiras com algum grau de inocência, embrutecidos pelo tratamento que recebem, e excluídos pela marca de “presidiário”. Afinal, Jean Valjean é um homem perigoso

Quantos desses Valjeans poderiam fazer grandes obras se apenas tivessem um Monsieneur Bienvenu para lhes dar uma segunda chance? Dificil saber quantos foram totalmente destruídos pela dupla exclusão da pobreza e do cárcere. Mas é certo que não há como se recuperarem enquanto forem caçados pelos autoproclamados justiceiros do Brasil, e sua visão de que bandidos nunca mudam. Afinal, Jean Valjean é um homem perigoso

Não raros são aqueles condenados por crimes pelos quais já pagaram, independente de provas. “Ele tem passagem pela polícia” ou “ele já foi preso antes” parece ser condenação o bastante, mesmo quando as evidências são tenues. Há 150 anos, a crítica a essa mentalidade já fora feita. Não bastassem os nossos Valjeans, temos ainda inúmeros Champmathieus, condenados preemptivamente pelos crimes de seus pares. Acusado pelo roubo de uma maçã e confundido com Valjean, Champmathieu é um homem condenado. Afinal, Jean Valjean é um homem perigoso, e Mathieu só pode ser Valjean, logo Champmathieu é culpado, pois sabe-se que ele é um criminoso, logo ele só pode ter cometido um crime.

Quantos suspeitos mortos em “trocas de tiro” (a queima-roupa e por trás) com a polícia não passam por esse julgamento? Ele tinha ficha na polícia, logo, só podia estar cometendo um crime, não é? A sina do presidiário é usada das esferas mais baixas, como forma de condenar os já condenados, até nas altas escalas da política brasileira. Quem pode esquecer as covardes acusações contra a Presidente da República, pelo fato de ter sido presa durante os sombrios anos da ditadura? Como se a insurreição contra um regime injusto fosse ela própria injusta. As barricadas ainda se erguem, os excluídos ainda lutam.

Um século e meio depois de “Os Miseráveis”, ainda pensamos como Javert: como se lei e justiça fossem o mesmo, como se a criminalidade fosse algo incorrigível. Os mesmos que se dizem cidadãos de bem e “boas pessoas” não se dispõe a dar uma segunda, ou sequer uma primeira chance para as legiões de miseráveis do Brasil. A mentalidade binária de Javert não tem surtido resultados – se qualquer coisa, tem resultado na onda de violência por parte dos excluídos que foi vista no último fim de semana, e aumentado o poder do crime junto a uma população que os “cidadãos de bem” julgam preemptivamente.

Sejamos mais como o bispo de Digne, Monsieneur Bienvenú, e abramos as portas para a justiça, não para uma lei cega e de coração gelado. O “criminoso perigoso” Jean Valjean, ao final do épico de Hugo, se demonstra repetidas vezes um homem mais justo, virtuoso e ético que Javert – e simplesmente porque um homem olhou além da sina de presidiário e viu nele um irmão, uma vítima, e uma alma a ser salva – conceitos que deveriam ser prioridades na sociedade. Ouçamos Hugo, ofereçamos a chance de redenção e cortemos o ciclo de violência enquanto há tempo – antes que as barricadas se ergam outra vez e tenhamos uma perda maior de vidas.

Look Down (The Beggars), parte da trilha sonora do filme “Os miseráveis”:

2 pensamentos sobre “Javert e os presos de joinville

  1. […] carcerário em seu clássico “Os Miseráveis”. Como muitos dos presos brasileiros, Jean Valjean é preso por um crime pífio, e perde 19 anos de sua vida por causa disso. Entra na prisão um […]

  2. Caraca, ficou muito completo esse texto. Eu imagino que algum dos boçais que demonstraram seus ataques inflamados nos comentários ( muitas vezes anônimos do AN) ficariam muito confusos diante de tantos argumentos. Perceberiam sua rasa concepção do problema, pois é típico do cidadão médio não conseguir discernir a lógica contínua do que gera os crimes na nossa sociedade, é recorrente não perceber que ele é em parte responsável por alimentar esse sistema viciado que gera cada vez mais desgraça e desigualdade. Sempre sua conclusão final só consegue conceber a criminalidade como fruto inexorável do estilo de vida escolhido pelos bandidos da periferia.
    Os sangues ruins tem que morrer, afinal só deve haver direitos humanos para humanos direitos. Os outros humanos, são errados. Nasceram num lugar errado, na hora errada e acabaram dando errado. Então nem são humanos, não vamos lhes dar o direito. E assim eles lavam as mãos de todo o problema.
    Excelente texto!

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